Considerações para Programas de Conformidade Global sob a Nova Infração de Falha em Prevenir Fraude do Reino Unido

Considerações para Programas de Conformidade Global sob a Nova Infração de Falha em Prevenir Fraude do Reino Unido

Introdução

Em outubro de 2023, o Reino Unido introduziu uma nova infração corporativa: a “falha em prevenir fraude” (failure to prevent fraud), por meio do Economic Crime and Corporate Transparency Act 2023 (ECCTA). Essa legislação representa um marco significativo na responsabilização de empresas por fraudes cometidas por seus funcionários, agentes ou terceiros associados, mesmo que a alta direção não tenha conhecimento direto das irregularidades.

Para empresas com operações globais, especialmente aquelas com presença no Reino Unido ou que mantêm relações comerciais com entidades britânicas, essa nova regulamentação exige uma revisão urgente dos programas de conformidade (compliance). Neste artigo, exploraremos as principais considerações para adaptar os programas de conformidade global à nova infração, além de estratégias para mitigar riscos e garantir a aderência às exigências legais.


1. Entendendo a Nova Infração: “Falha em Prevenir Fraude”

1.1. O que é a infração?

A nova infração, prevista na Seção 199 do ECCTA 2023, estabelece que uma organização será responsabilizada criminalmente se um funcionário, agente ou terceiro associado cometer fraude em benefício da empresa (ou com intenção de beneficiá-la), a menos que a empresa prove que tinha “procedimentos razoáveis” para prevenir tal conduta.

Isso significa que:
Não é necessário provar que a alta direção tinha conhecimento ou intenção fraudulenta – basta que a fraude tenha ocorrido em nome da empresa.
A responsabilidade é objetiva – a empresa deve demonstrar que adotou medidas preventivas adequadas.
Aplica-se a fraudes cometidas por qualquer pessoa associada à empresa, incluindo funcionários, consultores, parceiros comerciais e até fornecedores.

1.2. Quais tipos de fraude estão cobertos?

A legislação abrange uma ampla gama de fraudes, incluindo (mas não limitado a):

  • Fraude por falsa representação (Seção 2 do Fraud Act 2006)
  • Fraude por abuso de posição (Seção 4 do Fraud Act 2006)
  • Fraude por omissão (quando há obrigação legal de divulgar informações)
  • Fraude em transações comerciais (como manipulação de contratos ou faturamento falso)
  • Fraude em subsídios ou benefícios públicos

1.3. Quem está sujeito à nova lei?

  • Empresas britânicas (independentemente do tamanho)
  • Empresas estrangeiras com operações no Reino Unido (filiais, subsidiárias ou mesmo relações comerciais significativas)
  • Organizações que fornecem serviços ou produtos para clientes britânicos

Exceção: Pequenas empresas (com menos de 50 funcionários e faturamento inferior a £10 milhões) estão isentas, mas ainda devem adotar boas práticas de compliance para evitar riscos reputacionais e legais em outras jurisdições.


2. Impactos para Empresas Globais

A nova infração do Reino Unido tem implicações transnacionais, especialmente para empresas com:
Operações no Reino Unido (filiais, escritórios ou equipes locais)
Parcerias com empresas britânicas (fornecedores, distribuidores, joint ventures)
Transações financeiras envolvendo o Reino Unido (pagamentos, investimentos, contratos)

2.1. Riscos para Empresas Brasileiras

Empresas brasileiras que:

  • Exportam para o Reino Unido
  • Têm subsidiárias ou filiais no país
  • Trabalham com intermediários britânicos (agentes, consultores, distribuidores)
  • Participam de licitações ou contratos públicos britânicos

Podem ser responsabilizadas se um funcionário ou terceiro cometer fraude em seu nome, a menos que comprovem a existência de procedimentos de compliance robustos.

2.2. Comparação com Outras Legislações Antifraude

A nova lei britânica se assemelha a outras regulamentações globais, como:
| Legislação | Jurisdição | Foco | Responsabilização |
|—————|—————|———-|———————-|
| UK Bribery Act (2010) | Reino Unido | Suborno e corrupção | Falha em prevenir suborno |
| Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) | EUA | Suborno de agentes públicos | Responsabilidade da empresa |
| Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) | Brasil | Corrupção e fraudes em licitações | Responsabilidade objetiva |
| Failure to Prevent Fraud (ECCTA 2023) | Reino Unido | Fraudes em geral | Falha em prevenir fraude |

Diferencial da nova lei britânica:

  • Amplo escopo (não se limita a corrupção, abrange qualquer fraude)
  • Aplica-se a terceiros (fornecedores, parceiros, agentes)
  • Ênfase em procedimentos preventivos (não basta ter políticas, é preciso provar eficácia)

3. Como Adaptar o Programa de Conformidade Global?

Para mitigar riscos sob a nova infração, as empresas devem reforçar seus programas de compliance, com foco em:

3.1. Avaliação de Riscos Específicos de Fraude

  • Mapear áreas de alto risco:
    • Departamentos financeiros (contas a pagar, faturamento, tesouraria)
    • Compras e cadeia de suprimentos (fraudes em contratos, superfaturamento)
    • Vendas e marketing (representações falsas, descontos não autorizados)
    • Terceiros (agentes, consultores, distribuidores)
  • Identificar fraudes comuns no setor (ex.: fraude em seguros, manipulação de dados, desvios em licitações)

Ferramenta útil: Matriz de Risco de Fraude (classificar riscos por probabilidade e impacto).

Matriz de Risco de Fraude
Exemplo de matriz de risco para identificação de fraudes.

3.2. Políticas e Procedimentos Antifraude

As empresas devem atualizar suas políticas para incluir:
Código de Conduta Antifraude (com exemplos práticos de condutas proibidas)
Política de Terceiros (due diligence em fornecedores, agentes e parceiros)
Controles Financeiros (aprovações em múltiplos níveis, auditorias surpresa)
Canal de Denúncias Eficaz (whistleblowing com proteção ao denunciante)

Exemplo de cláusula em contrato com terceiros:

“O Parceiro Comercial declara que não se envolverá em qualquer ato de fraude, falsificação ou conduta dolosa que possa beneficiar direta ou indiretamente a [Empresa]. Qualquer violação desta cláusula resultará em rescisão imediata e ações legais.”

3.3. Treinamento e Conscientização

  • Treinamentos obrigatórios para:
    • Funcionários em áreas de risco (financeiro, compras, vendas)
    • Líderes e gestores (responsabilidade pela supervisão)
    • Terceiros (fornecedores, agentes, consultores)
  • Conteúdo do treinamento:
    • O que constitui fraude sob a lei britânica
    • Exemplos reais de casos e consequências
    • Como reportar suspeitas (canal de denúncias)

Dica: Utilizar gamificação e casos práticos para aumentar o engajamento.

Treinamento Antifraude
Exemplo de treinamento interativo sobre fraude.

3.4. Due Diligence de Terceiros

A nova lei exige que as empresas monitorem ativamente seus parceiros comerciais. Recomenda-se:
Verificação pré-contratação (background checks, reputação no mercado)
Auditorias periódicas em fornecedores críticos
Cláusulas contratuais antifraude (direito a auditoria, rescisão por suspeita de fraude)
Monitoramento contínuo (alertas de mídia, mudanças na estrutura societária)

Ferramentas úteis:

  • Bases de dados de sanções (OFAC, UK Sanctions List)
  • Plataformas de due diligence (Dun & Bradstreet, Refinitiv)

3.5. Mecanismos de Denúncia e Investigação

  • Canal de denúncias anônimo e seguro (compliance hotline, plataforma digital)
  • Proteção a denunciantes (proibição de retaliação, confidencialidade)
  • Protocolo de investigação interna:
    • Equipe dedicada (compliance + jurídico + auditoria)
    • Documentação de todas as etapas
    • Relatórios para órgãos reguladores, se necessário

Exemplo de fluxo de denúncia:

  1. Recebimento da denúncia (via canal seguro)
  2. Triagem inicial (avaliação de credibilidade)
  3. Investigação (coleta de evidências, entrevistas)
  4. Ação corretiva (sanções disciplinares, melhorias nos controles)
  5. Relatório final (arquivamento ou encaminhamento às autoridades)

Fluxo de Denúncia
Exemplo de processo de whistleblowing.

3.6. Auditoria e Monitoramento Contínuo

  • Auditorias internas e externas (foco em áreas de alto risco)
  • Análise de dados (detecção de padrões suspeitos, como pagamentos incomuns)
  • Testes de controle (simulações de fraude para avaliar eficácia dos procedimentos)
  • Revisão periódica do programa de compliance (pelo menos anual)

Tecnologias recomendadas:

  • IA e machine learning para detecção de fraudes
  • Blockchain para rastreabilidade de transações
  • Software de compliance (como SAP GRC, MetricStream)

4. Defesa Legal: Como Provar “Procedimentos Razoáveis”?

Caso uma empresa seja investigada, ela deverá demonstrar que adotou medidas suficientes para prevenir fraudes. Para isso, é essencial:

4.1. Documentação Robusta

  • Registros de treinamentos (listas de presença, materiais utilizados)
  • Políticas e procedimentos atualizados (com data de revisão)
  • Relatórios de due diligence de terceiros
  • Registros de denúncias e investigações

4.2. Cultura de Compliance

  • Comprometimento da alta direção (mensagens do CEO, alocação de recursos)
  • Incentivos à ética (recompensas por comportamento íntegro)
  • Tolerância zero à fraude (sanções exemplares para infrações)

4.3. Benchmarking com Práticas de Mercado

  • Aderir a padrões internacionais (ISO 37001 – Antissuborno, COSO – Controles Internos)
  • Consultar guidelines regulatórios (FCA, SFO, Serious Fraud Office)

5. Consequências da Não Conformidade

As empresas que falharem em prevenir fraudes podem enfrentar:
🚨 Multas ilimitadas (sem teto máximo)
🚨 Proibição de participar de licitações públicas
🚨 Danos reputacionais (perda de clientes, investidores e parceiros)
🚨 Responsabilidade penal para executivos (em casos graves)

Exemplo recente:
Em 2023, a Serious Fraud Office (SFO) do Reino Unido multou uma empresa em £102 milhões por falha em prevenir fraudes em contratos governamentais.


6. Passos Imediatos para Empresas Globais

  1. Realizar uma avaliação de risco de fraude (foco em operações no Reino Unido).
  2. Atualizar políticas e procedimentos para incluir a nova infração.
  3. Treinamento obrigatório para funcionários e terceiros.
  4. Revisar contratos com parceiros britânicos (incluir cláusulas antifraude).
  5. Implementar ou melhorar o canal de denúncias.
  6. Contratar consultoria especializada (se necessário, para auditoria de compliance).

Conclusão

A nova infração de “falha em prevenir fraude” do Reino Unido eleva o padrão de responsabilidade corporativa, exigindo que empresas globais adotem uma abordagem proativa e abrangente em compliance. Não se trata apenas de evitar multas, mas de proteger a reputação, garantir a sustentabilidade dos negócios e promover uma cultura de integridade.

Recomendações finais:
Não subestime os riscos – mesmo empresas fora do Reino Unido podem ser afetadas.
Invista em tecnologia – ferramentas de monitoramento e IA são essenciais.
Mantenha-se atualizado – a legislação pode evoluir com novos casos e interpretações.
Busque apoio especializado – advogados e consultores de compliance podem ajudar na adaptação.

A conformidade não é um custo, mas um investimento na resiliência e credibilidade da sua empresa.


Fontes e Referências


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